Três dias depois na próxima volta a Cachimbo, Azambuja à tardinha retornava de uma corrida que sempre fazia na pista que dá para o aeroporto, quando fora avisado por alguém de que o chefe desejava lhe falar. Ao entrar no prédio do comando, deu com o capitão Nishio, que lhe dirigiu um sorrisinho. Não era um sorriso agradável, um sorriso de simpatia, mas sim um sorriso de deboche, um sorriso irônico, havia ali um quê de maldade. Azambuja depois fez-me um comentário, mas no momento não entendeu nada.
O tenente Ezequias disse-lhe que o comandante, ao saber do fato – a representação – perguntou sobre quem havia redigido o documento. Sabendo que fora Azambuja, ele deu um murro na mesa. Ficou furioso.
Há algum tempo, desde aquela tarde em que mudaram de assunto na presença do comandante, que notei o ambiente nada bom, em Brasília mas principalmente em Cachimbo. Não à toa, as punições disciplinares aplicadas pelo coronel Camboim soavam exageradas, coisa que era para simples repreensão verbal, ele aplicava ao infrator quatro dê, se a falta era mais grave, dez pê. Teve um soldado que levou vinte pê. Nada era dito, mas neste caso o soldado era um grande profissional, bastante querido, e se, muito, era suficiente oito dê ou quatro pê.
A temperatura não estava agradável. Quanto a Azambuja em particular, comecei a perceber a luz amarela acesa; a batata do Primeirão estava assando. Creio que ele tinha certeza disso, apesar de nada falar.
O tempo foi passando e o assunto não era resolvido. Parecia que o comandante esperava um momento mais oportuno, ou mesmo teria esquecido o assunto, pondo uma pedra em cima dele.
Terminou mais aquela etapa em Cachimbo. Dessa vez Nogueira foi junto com a equipe para Brasília a fim de realizar inspeção de saúde. Voltaria a Cachimbo no próximo avião.
— Coronel, eu, eu… não estou entendendo. Fui apenas um instrumento… — Azambuja, surpreso, não conseguia muito bem articular as palavras, quase gaguejando.
— ??
— Você — continuou Camboim –, você não afastou o representador, o Nogueira, da jurisdição do representado, o sargento Pedreira.Azambuja, de rabo de olho, tentava ver a reação do oficial que estava na cadeira à sua esquerda, seu chefe imediato. Nenhuma palavra, nenhuma reação, nem ao mesmo tinha coragem de dirigir o olhar ao comandante que falava. Fazia de conta que nada tinha com isso. Confidenciou-me Azambuja que, convencido de que Ezequias nada ia dizer em seu favor, mas também de que nada adiantava argumentar ao comandante sobre a existência em Cachimbo na data de dois oficiais, o próprio chefe imediato, que agora estava inerte, sentado a seu lado, e quem lhe dera a ordem, cabendo ao Primeirão a obediência de cumpri-la, e também o capitão Nishio, que, embora de outra função, era o oficial mais antigo presente no campo. Cabia sim a eles decidirem e agirem e não a Azambuja, que, apesar de ser o mais sereno presente, era na ocasião apenas um subalterno. Não cabia a ele, portanto, a ação.
Diante do silêncio de Azambuja, e também do silêncio de seu chefe imediato, que calado entrou e mudo permaneceu, o comandante continuava a descompostura:
— Você concorda comigo Azambuja? Concorda que o representador deveria ter sido afastado da área do representado?
— Ahá! Então você concorda comigo? Concorda de que você errou por omissão?
Houve com certeza gente dando pulos de contentamento com o infortúnio desse valente e honrado colega. Depois, somente muito depois, fiquei sabendo quem eram.
O tempo correu e seis meses depois o coronel Camboim perdia o comando da Unidade. Foram muitos os desacertos, que não se limitaram somente às injustas punições disciplinares que costumava aplicar. O principal problema detectado pelas autoridades foi a contabilidade mal feita dos valores recebidos pelo Campo a título de hospedagem. Estes valores não eram repassados legalmente ao órgão superior, como era exigido por lei. Houve uma denúncia, com certeza, não se sabendo o autor. A gota d’água foi quando um paciente foi levado ao Campo em busca de assistência médica, porém o helicóptero não estava disponível, vindo o infeliz a falecer por falta de socorro adequado no hospital mais próximo. A aeronave estava à disposição do coronel Camboim que, em companhia de sua namorada, se encontrava em um pousada distante 150 quilômetros do local. O caso repercutiu muito, chegando a uma revista de circulação nacional.
Enquanto Camboim descia ladeira abaixo, Azambuja, agora já promovido a suboficial, preparava-se para um concurso. Em breve seria tenente. Na nova seção de trabalho dispunha de mais tempo e tranquilidade, podendo estudar à noite durante três meses, o que lhe garantiu bom sucesso na sua carreira.
Algum tempo depois, o próprio Azambuja requereu o pagamento da indenização de localidade especial, que fora negada a toda tropa. O documento, ao chegar nas altas esferas da Força, foi transformado em portaria, legalizando a partir de então o pagamento da indenização a todos. Só aí eu fui entender a fábula que Azambuja outra vez havia contado.
Passado algum tempo, percebi que as coisas deveriam ocorrer assim mesmo. Se o filme de Azambuja já vinha sendo queimado naqueles meses da administração do coronel Camboim, era certo de que o comandante não assinaria, como era exigido, o formulário de inscrição. E se assinasse, o faria não recomendando a inscrição. Isso, embora injusto, levaria a um transtorno desnecessário, fazendo com que Azambuja perdesse o prazo. Ainda que não chegasse a perder o prazo, o incidente lhe traria intranquilidade, culminando com o insucesso dele no evento.
Azambuja foi aprovado com louvor. Por mera curiosidade, verificando as médias de todos os aprovados, notei que a de Azambuja foi a maior. Creio que, permanecendo em Cachimbo, naquela rotina e ir e voltar a cada quinzena, era difícil conseguir tal feito, talvez até nem mesmo fosse aprovado.
Deus escreve certo por linhas certas.